domingo, 9 de agosto de 2009

O RACIONALISMO NA HISTÓRIA E SUA REFUTAÇÃO

No trabalho "Características da Filosofia Moderna", vimos que um dos caracteres desta filosofia é o racionalismo. Esta teoria significa em teologia a negação de toda verdade revelada por Deus e em filosofia um sistema que, desprezando os sentidos, admite a razão como fonte e faculdade superior do conhecimento.
Estudaremos aqui o Racionalismo na História como método de se adquirir o saber, ou seja, como meio gnosiológico de acesso ao ser, à realidade, e veremos que é encontrado já na Grécia antiga, porém estabelecido de maneira formal na Idade Moderna por Descartes e seguido por muitos filósofos e homens de ciência, apesar de modificado por cada sequaz de acordo com a síntese proposta.
O Racionalismo Gnosiológico ou Epistemológico faz sua aparição já na Grécia pré-cristã, quando Parmênides de Eléia (530-460 a.C.) afirmou que a experiência só gera erros e que somente a razão conduz o sábio à verdade. Este filósofo, partindo do princípio de identidade, deduz matematicamente uma metafísica monista e fixista na imobilidade absoluta do ser, negando toda mudança e todo movimento, como fenômenos de ilusão dos sentidos.
O estoicismo, mais propriamente, a moral estóica é racionalista também, pois busca na moral e na ética o mesmo fixismo imobilista da metafísica de Parmênides: o homem insensível ao prazer e a dor chegará à felicidade, que reside na virtude, e esta, na razão. As paixões são más, pois cegam, enquanto a razão ilumina, e a razão é Deus. Viver, pois, segundo a razão é ser de alguma maneira Deus.
Porém, onde a doutrina racionalista se formaliza é na Filosofia Moderna, a partir de Descartes (1596-1650), particularmente, a partir da tese comum a todos os racionalismos, a tese do inatismo das idéias, que para Descartes eram as únicas formalmente claras e distintas, arrastando desta maneira, aos racionalistas posteriores, à concepção gnosiológico-matemática do universo.
Descartes formula seu racionalismo com as seguintes teses: o inatismo das idéias e o critério das idéias claras e distintas; a concepção matemática da ciência; a grande estima do puramente conceptual e a desestima do individual e concreto, particularmente o material; a fé absoluta na transparência racional do ser; o método de análise e síntese. Não admite Descartes, em realidade, mais idéias claras e distintas do que as inatas, e essa claridade e distinção aparece já implicada no 'cogito, ergo sum, penso, logo existo'. Portanto, todo conhecimento que venha por outros caminhos - experiência, autoridade, revelação divina - aparecerá obscuro e confuso, e daí, rejeitável.
O problema gnosiológico-racionalista se agudiza mais pelo caráter geométrico-matemático do sistema cartesiano, que parte do Cogito como um 'princípio' simples e absoluto, a partir do qual se deve reconstruir o conjunto do mundo gnosiológico por rígida dedução lógica. Por 'dedução lógica' entende Descartes tudo aquilo que se conclui necessarimente de outras verdades conhecidas com certeza. Não há, para o pai da filosofia moderna, outros meios de conhecer a realidade a não ser a intuição e a dedução.
Espinosa (1632-1677), em seu "Tractatus de intellectus emendatione" (1677), leva ao extremo o geometrismo racionalista de Descartes, ensinando ser o conhecimento matemático (2+3=5) o modo de conhecer perfeito e certo, e partindo das leis cartesianas sustenta que a inteligência não procede em suas idéias determinada pelos objetos da percepção externa. O 'ordo geometricus spinozano' é um processo rigidamente escalonado de definições, proposições, axiomas e demonstrações, do qual devem ser deduzidas estritamente as conclusões. Fora dessas conclusões assim deduzidas, não é possível falar de um conhecimento verdadeiro e certo. A origem do conhecimento verdadeiro não são as percepções sensíveis, mas sim as idéias mesmas e as definições, idéias e definições estas que estão contidas na Idéia das idéias; desta maneira, para Espinosa, nosso espírito é uma imagem da natureza pela dedução racional de todas as suas idéias da Idéia, fonte de todas elas.
Leibniz (1646-1716) é mais um afilhado do racionalismo cartesiano com sua Monadologia transformada em teoria do conhecimento. Para Leibniz, o espírito é essencialmente pensamento e conhecimento, e por isso as mônadas, ou seja, os elementos inextensos e ativos que compõem os corpos e que é espiritual, não podem ser irracionais, mas sim um núcleo do racionalismo. Ainda que no espírito existam três conteúdos: os sentidos externos, o sentido comum/imaginação e o entendimento, só o entendimento possui os conteúdos puramente inteligíveis ou os conceitos puros. Esses conceitos puros, para Leibniz, são manejados rigorosamente segundo o método do conhecimento perfeito, isto é, o matemático, e o processo é abstrair do inatismo a forma perfeita do conhecimento certo, da ciência. Por esse motivo, nosso conhecimento é exatamente recordar (Platão); os sentidos, mais que verdade, nos proporcionam erros, e nosso espírito se livra da matéria e da sensibilidade no conhecimento puro das verdades eternas, dos inteligíveis puros.
O empirismo, para Leibniz, nunca nos fornecerá uma verdade necessária e eterna, pois é uma soma de casos e exemplos que, se bem podem nos proporcionar 'verdades de fato', jamais poderá nos fornecer uma 'verdade de razão', uma 'verdade verdadeira'. As verdades eternas e universais só nos podem vir matematicamente pelas 'verdades de razão'; por isso uma prova autêntica só se alcança pelas intuições racionais dos princípios internos. Leibniz não nega o fato do conhecimento dos sentidos, mas esse conhecimento não é verdadeiro, e os sentidos não são causa do conhecimento, mas sempre ocasião, ainda que necessária.
Emanuel Kant (1724-1804) é também racionalista, mas ligado ao empirismo de Hume, matiza e, às vezes, fundamenta o racionalismo, abrindo as portas à sua forma mais extremada, o idealismo. Absorve Kant totalmente a matéria do conhecimento na forma pura, que nasce não de um inatismo, rejeitado pelo filósofo de Koenigsberg, mas de um a priori transcendental, eficaz substituto das idéias inatas. Eleva o racionalismo, desta maneira, ao absoluto, tendo em Hegel sua culminância, contruindo uma cosmovisão total puramente a priori por simples jogo dialético das idéias.
Resumindo o até aqui visto, depreende-se que as teses fundamentais do Racionalismo são:
1. O inatismo, defendido por Descartes, fortalecido por Leibniz e rejeitado por Kant, que o substitui pelo a priori transcendental;
2. Esta tese ensina ser a inteligência inata em si mesma, quer dizer, não necessita de impactos externos para conhecer, bastando-lhe refletir sobre si mesma para conceber o ser e o pensamento; a experiência, por sua vez, nunca nos fornecerá a verdade, porque não nos pode dar a necessidade de uma coisa;
3. O conhecimento certo e verdadeiro só pode ser expresso por meio de conteúdos universais e necessários, que de nenhuma maneira podem ser derivados da experiência, já que ou são inatos ou a priori;
4. Logo, a ciência nasce de uma 'matematização' gnosiológica do conhecimento, onde o caos da experiência está sempre em luta com esta matematização que há de originar-se da mesma inteligência, da suficiência gnosiológica do entendimento humano. A ciência, desta maneira, é um saber sistemático fundado em um conjunto de relações necessárias, e que, portanto, deve ser obra da razão, ou seja, construção a priori.
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REFUTA-SE o Racionalismo provando que todos os seus argumentos são falhos, incompletos por uma parte, mesmo quando é verdade que pode iluminar zonas do conhecimento deixadas em profunda obscuridade pelo empirismo.
O inatismo, ainda que a priori não haja nenhuma razão que o demonstre absurdo, é uma afirmação que deve ser demonstrada a posteriori. O Racionalismo apóia-se no inatismo-postulado ou chega à conclusão do mesmo partindo de afirmações não provadas, como Leibniz, por exemplo, que fundava-o na impossibilidade de ação transitiva de uma substância sobre outra, e logicamente o entendimento teria que bastar-se a si mesmo por meio do inatismo. Mas, onde está provada ou como se pode provar essa impossibilidade? Simplesmente se afirma dogmaticamente.
Supõe o Racionalismo que o entendimento não transcende ao conhecimento sensível. Da mesma maneira que o conhecimento sensível no empirismo não se coaduna com o conhecimento intelectual, no racionalismo, o conhecimento intelectual não se baseia no sensível. Mas tudo isso se afirma e se supõe, pois, analisando as duas teorias, não justificam-se semelhantes conclusões. A realidade gnosiológica é que a inteligência, os conceitos do entendimento, transcendem a experiência, a ilumina, a enquadra gnosiológicamente, fazendo que seja verdadeira experiência, pela qual o homem conhece coisas, o que é impossível somente com a pura sensação. A experiência nos fornece fatos, mas apoiada em princípios que supõem raciocínios, sendo ela como fonte gnosiológica a síntese da sensação e intelecção.
Outro postulado do Racionalismo é ser a única fonte do saber o espírito, a inteligência humana, já que é uma atividade que estabelece relações. Mas donde se prova que a experiência não estabelece também relações gnosiológicas concretas? O exemplo é claro no caso de uma audição musical, em que as relações sensoriais auditivas levam ao conhecimento de uma obra determinada, com tudo o que essa determinação possui de conhecimentos gnosiológicos.
Tão pouco prova o Racionalismo a tese de que a inteligência é inata em si mesma, isto é, que só lhe basta a reflexão para obter as idéias. Isso, como vimos acima, deve ser provado necessariamente a posteriori. O que é fato é que um ser humano desprovido de sensação está incapacitado para refletir, sua inteligência jamais despertaria para uma vida consciente gnosiológica.
A metodologia racionalista também é falha e errônea. É um fato de experiência que a experiência só nos fornece fatos; ora, isto não se deduz de nenhum princípio nem se demonstra: é um fato. Como então o aceita o racionalismo? Ou se aceita o fato de experiência, e então a experiência colabora gnosiológicamente na estruturação racional, ou não se aceita, e então a inutilidade gnosiológica da experiência é um simples a priori, sem justificação possível.
Donde se deduz que o método racionalista se funda em um a priori para demonstrar outro a priori. Este método encaixa-se bem em uma hipótese matemática, que é a estrutura mental do racionalismo, mas é impossível dentro de uma verdadeira Gnosiologia.
Paulo Barbosa.

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